Cerração

Não sei por que o pai cisma em sair toda noite, quando não é a cavalo é a pé mesmo; da minha casa até aqui na venda do Antero dá quase uma légua, fora os morros que a gente tem que subir, se a gente não cortasse caminho no trilho que tem lá perto da figueira dos Camilo ia demorar muito mais.

Mas a mãe pediu pra eu vir com ele, fazer o quê? Hoje nós viemos a pé, porque o pai não precisa levar nada pesado pra casa, hoje ele só veio tomar cachaça mesmo e cantar com os violeiros. O pai faz umas rimas muito boas, o Antero gosta porque quando ele vem, o povo demora a ir embora e fica todo mundo bebendo e cantando até tarde.

Hoje meu irmão mais velho, o Martino, esteve aqui, veio falar comigo e perguntou da mãe. O Martino não mora com a gente, ele é casado e mora na vila. A vila fica mais pra frente ainda, depois do ribeirão. O pai e o Martino não estão conversando, o pai não gosta da mulher dele, mas mesmo assim o Martino tomou a benção do pai antes de sair da venda, ele só veio comprar querosene e saiu.

Depois que o Martino saiu, eu acabei cochilando debruçado na mesa. Só acordei com o pai chamando pra gente ir embora, fiquei com uma preguiça de sair da cadeira mas levantei rápido cambaleando de sono e saimos.

Eu queria chegar rápido em casa pra deitar logo, mas sabia que a casa ficava longe e ia demorar pra gente chegar. O pai já estava bêbado, ficava cantarolando umas cantigas, rindo e falando sozinho, acho que ele pensava que estava falando comigo pois de vez em quando ele esperava eu responder alguma coisa.

Eu já tinha uns oito anos nessa época, não gostava de andar de mãos dadas com ninguém, o pai ia na frente e eu ia acompanhando ele. Nós andamos bastante, da venda do Antero até perto da encruzilhada que vai pro sítio dos Cassio, ali o pai resolveu parar pra mijar. Eu fiquei de longe, por que é feio ficar olhando os outros mijarem, agachei no chão um pouquinho pra descansar, eu já estava mais acordado, mas estava cansado de andar.

A noite estava escura, tinha muita estrela no céu, mas não dava pra ver a lua, quase não dava pra ver nada na estrada. O pai estava demorando muito já, da estrada não dava pra ver ele e ele tinha ficado quieto. Comecei a ficar com medo de ficar sozinho ali. Inventei que queria mijar também e fui lá. Olhei pra árvore e meu pai tinha sumido. 

Tomei um susto quando olhei pra árvore e não vi meu pai ali, fiquei com muito medo e não sabia o que fazer, fiquei com medo de gritar, dizem que não é bom gritar de noite, eu olhei pra todos os lados mas estava muito escuro, comecei a chamar ele baixinho:

-Pai! aumentei um pouco a voz - PAI !

Ninguém respondia, comecei a querer chorar mas segurei! Afinal homem não chora, eu não sou um chorão igual ao meu irmão Carlo, que chora á toa, mas eu já estava muito nervoso, meu coração estava acelerado e minha barriga estava gelada.

Chamei mais uma vez! - PAI - Nada!

Não aguentei e comecei a chorar baixinho, agachei perto da árvore, cobri o rosto com as mãos e comecei a rezar. Ouvi um cachorro latindo, tremi de medo. Comecei a pensar na mamãe, queria que ela estivesse ali e me abraçasse, chorei quando lembrei dela.

Chamei meu pai de novo - PAI - ninguém respondeu, comecei a pensar que ele tinha morrido, que um lobisomem tivesse devorado ele, dizem que o Caetano da Bucaina vira lobisomem em noite de lua cheia, mas eu não ouvi ele gritar, como alguém pode sumir assim tão rápido e sem fazer barulho? 

Parei de chorar, mas estava quase perdendo o fôlego, respirando rápido e tremendo um pouco, pensei em me levantar e ir pra casa, sabia o caminho, a gente já tinha passado da encruzilhada, agora era só seguir reto e pegar o trilho na figueira, mas como é que eu ia chegar em casa sem meu pai, como é que a gente ia viver sem ele?

Ouvi um barulho no mato, será que era ele voltando? Mas e se não fosse ele? E se fosse a mesma coisa que pegou ele e agora estava atrás de mim? Procurei uma pedra no chão, não tinha nenhuma, procurei um pedaço de pau, também não tinha. O barulho parou, ouvi o cachorro latir de novo lá longe, me agachei devagarzinho me esgueirando pelo tronco da árvore. Comecei a rezar de novo.

De repente, ouvi alguém tossindo! A pessoa tossiu e resmungou um pouco, reconheci a voz do meu pai e gritei:

- PAI! É o senhor?

-Giuseppe! escutei ele falando o meu nome baixinho - e resmungando umas coisas que eu não entendi

- Onde o senhor está? perguntei agora com a voz mais baixa, não queria ter que gritar de novo.

Ele ficou resmungando alguma coisa, tomei coragem e fui seguindo o som da voz dele, que estava caído, bêbado a poucos passos de onde eu estava. Quando o encontrei deitado, abracei ele forte, nem liguei pro cheiro da cachaça que ele tinha vomitado. Comecei a chorar de novo baixinho pra ele não perceber.

Depois de abraçar, ele por um tempo, chamei ele pra ir embora, mas vi que ele estava dormindo bêbado. 

Tentei acordar ele, até sacudi ele, mas nada. Sentei perto dele e fiquei ali, esperando ele acordar pra gente ir pra casa. Mamãe ia ficar preocupada, por que uma pessoa teima em beber cachaça? Vai acabar caída num lugar qualquer rolando sobre o próprio vômito. Jurei que quando eu fosse grande eu nunca ia tomar cachaça.

Pensei em ir pra casa e chamar alguém, mas eu não podia deixar o pai ali, algum bicho podia comer ele, ainda mais que eu tinha gritado, podia ter chamado a atenção de algum monstro. Foi aí que eu me lembrei que eu tinha dado outro grito bem alto quando chamei ele. Fiquei cismado. Que diferença um menino do meu tamanho ia fazer se um lobisomem aparecesse ali.

Me arrependi de ter gritado, a minha avó falava que quando gritamos de noite, chamamos os bichos pra perto da gente. Pensei que se eu ficasse bem quieto, ia resolver. Fiquei quieto então. Ouvi o cachorro latindo de novo, dessa vez mais perto, parecia que era mais de um cachorro. Fiquei com medo, vai que era um cachorro doido.

Uma vez um cachorro do vizinho ficou doido, eles tiveram que matar ele senão ele ia matar todo mundo. Dizem que quando um cachorro doido morde alguém a pessoa fica doida também, ou morre ou pode virar lobisomem igual o Caetano da Bucaina. Dizem que os lobisomens são os chefes de todos os cachorros e que eles fazem um bando e seguem os lobisomens na noite de lua cheia, eu tenho muito medo de lobisomens, ainda bem que hoje não é lua cheia - pensei - nem dá pra ver a lua.

Os cachorros começaram a latir mais perto, alguns deles começaram a uivar, a noite estava escura, fria e eu estava com medo, só queria ir pra casa. Por que meu pai tinha que inventar de beber e cair aqui gente! Vou pedir pra mamãe nunca mais me mandar ir com meu pai na venda.

Começou a chover, tentei puxar meu pai pra debaixo da árvore, mas ele era muito pesado, eu não podia tomar chuva, ia ficar com bronquite, quando viu que estava chovendo meu pai acordou e levantou, pensei que ele fosse embora, mas o que ele fez foi só andar mais um pouco, até perto do barranco, puxei ele pelo braço, ele me sacudiu e falou pra eu procurar uma moita de capim-gordura, pra gente esconder, mas só tinha capim-gordura no alto do pasto e ele não estava aguentando nem andar... ainda bem que a chuva parou.

Meu pai sentou perto do barranco, chamei ele pra ir embora, ele já estava cochilando e acabou deitando de novo perto do barranco. Eu estava encharcado, minhas roupas molhadas, o barranco era cheio de barro e eu não queria deitar ali.Começou a ventar forte, fiquei com muito frio, tremendo de frio, estava começando a ficar com raiva do meu pai, por culpa dele eu estava passando um aperto danado. Mas a mamãe disse que a gente não pode ter raiva da família nem negar água pras pessoas, mesmo pra quem a gente não goste.

Fiquei pensando: se a gente não pode ter raiva da família e temos que fazer coisas boas pra quem a gente gosta, por que meu pai estava fazendo aquilo comigo? Será que ele não gosta de mim? Será que ele não via o medo que eu estava passando? Os perigos de ficar ali de noite? 

Depois da chuva o céu ficou cheio de nuvens brancas, não dava pra ver mais estrela nenhuma, olhei pro lado que ficava o ribeirão e a cerração estava aumentando. A professora falou que o nome certo pra cerração é neblina, aquela nuvem branca que ao invés de aparecer no céu aparece na terra. 

A cerração veio aumentando e ficou tudo branco.

Aquela imensidão branca era bonita de se ver, eu estava no meio dela e não via mais nada, só sentia frio.Se os anjos moram nas nuvens, talvez eu conseguisse ver um anjo, quem sabe tinha um monte de anjos ali, eles deviam ficar invisíveis ali o tempo todo. Meu medo foi passando, acho que quando as nuvens descem do céu pra terra assim, Deus fica mais perto da gente, que bom que Deus tinha ouvido a minha oração e mandado um monte de nuvens brancas pra me esconder dos monstros. 

Fui ficando mais calmo e acabei cochilando, ali mesmo, agachado perto do meu pai.

////////////////////////////////////// 

Preciso das opiniões de vocês!

Comentem!

11 comentários:

  1. Nossa, muito bom mesmo! A voz do garoto está perfeita, dá para sentir que ele é só um garoto. Mas o que mais me impressionou foi o próprio ritmo da narrativa. Ele começa calmo, meio travesso, depois compele o leitor a entrar numa leitura perturbadora e arrítmica, e termina com uma paz surpreendente. Uma coisa que poderia melhorar é que em certos trechos (por exemplo "mas estava ofegante"), na minha opinião, o narrador perde um pouco daquele toque de roça e de infantilidade. São só em alguns trachos mesmo, que me deu a impressão de uma linguagem mais urbana...

    ResponderExcluir
  2. ... entendi! Tentei manter a simplicidade na narrativa toda, até como um exercício já que faz anos que não escrevo "estórias", vou dar uma revisada e ver onde me distraí!

    Obrigado Marcos!

    ResponderExcluir
  3. Seu conto consegue manter o interesse o tempo inteiro! Ele tá longo para se ler em blog (olha só quem fala), mas em nenhum momento eu pensei nisso enquanto lia! Isso é fundamental em uma narrativa. Você conseguiu passar a voz do garoto sem deixar informal ou retardado demais, apesar de algumas palavras ficarem mto repetidas, eu sei, foi proposital, ainda assim o texto não se perdeu por isso.

    Adorei o fato que ele rapidamente muda de emoções e ideias ao longo do texto, isso é típico de criança e ficou perfeito no texto!

    Eu só não sei se a finalização foi a ideal, não pareceu um desfecho para mim, faltou alguma coisinha para deixar isso mais forte. Não vi nada que me incomodou além disso! Quero ler mais!!!

    ResponderExcluir
  4. ... eu tinha pensado num desfecho sobrenatural, mas deu a hora de ir pro trabalho e eu queria saber a opinião de vocês o mais rápido possível.

    Ainda não decidi se vou continuar a história ou modificá-la... sei lá, vamos ver no que dá!

    Obrigado Heluíza!

    ResponderExcluir
  5. Ficou bem legal.Eu consigo entender muito bem o que ele tenta transmitir contando sua história.Parece tudo bem real...
    Parabéns pelo conto,eu não conhecia esse seu lado escritor(...rsrsrs...)
    Estou esperando por mais contos.
    Beijinhoos

    ResponderExcluir
  6. @Milla eu escrevo desde adolescente, era tudo manuscrito em cadernos e mais cadernos, quando cresci* dei uma parada, mas inspirado nos amigos Marcos, Heluíza e outros, estou voltando à ativa!


    Obrigado por comentar priminha!

    Shalom!

    (*com crescer quero dizer ficar mais velho... vc entendeu)

    ResponderExcluir
  7. Oi Vaz

    Aqui é o Marcelo e a Ione, te digo que gostamos muito dos contos. O primeiro é muito interessante, mas exige do leitor um pouco mais de conhecimento histórico. Mas dá pra ler tranquilamente sem isso também, porque vc coloca as referências ao final. Ambos contos transmitem emoção e o mais interessante é que são bem diferentes. O último conto realmente, como já foi dito no post, termina abruptamente mas é muito bom também. Tem um clima de roça, e o falar do menino remete a realidade misturada com as crenças do lugar. Muito bom, parabéns. Agora que sabemos onde encontrar seus contos, leremos mais.

    abraços de Ione e Marcelo

    PS: mande-nos sempre notícias aí de Juiz de Fora, de vcs, tá bom!

    ResponderExcluir
  8. Obrigado pelos comentários!
    Mandarei notícias sim!
    Grande abraço!

    VAZ

    ResponderExcluir
  9. Nossa eu me vi no lugar do garoto muito bom esse conto











    nossa eu me vi no lugar do garotinho muito bom esse conto

    ResponderExcluir
  10. Oi Adnilson, que bom ter encontrado o link do seu blog de contos no blog do Salomão!

    O primeiro deles me sensibilizou bastante porque a barbárie vivida pelo povo judeu ante o silêncio e até a conivência da maioria durante o Holocausto é algo incompreensível aos olhos da racionalidade.

    Não sei qual era a idade da garota cujo pseudônimo é Hannah. O discurso dela me pareceu um tanto polido demais para uma pessoa de pouca idade, que nos últimos anos tivera, possivelmente, a maior parte do seu tempo envolvida naquela trama que começou anos antes, e foi cada vez mais se acirrando.

    Sei que a linguagem do delírio tem a sua retórica própria, mas ela requer, ainda assim, um componente prévio do vocabulário utilizado, mas talvez fosse pronunciado de uma maneira um pouco mais desordenada.

    O certo é que quem conta a história também acaba por “ajeitar” as suas memórias.

    Assim, entre a ficção e a história, você conseguiu transmitir um sentimento de revolta em relação aos “experimentos médicos” desse sr. Mengele, a quem eu me nego em reconhecê-lo como doutor.

    Parabéns! Continue escrevendo. Você tem talento literário.

    Kélita

    ResponderExcluir
  11. Olá Kélita!

    Que honra receber a sua visita e ler o seu comentário.

    Entendi perfeitamente o que você disse a respeito do vocabulário de Hannah, mas confesso que essa não foi uma preocupação que tive, simplesmente, porque na história Hannah é apenas um "Oráculo", as palavras que ela fala não vem do seu próprio entendimento, mas são como profecias, como o "Toque de um anjo".

    Já em "Cerração" tive sim que me preocupar com o ritmo da narrativa e com a escolha das palavras que figuravam no vocabulário do menino.

    Obrigado pelas palavras de incentivo!!

    Grande abraço!

    Adnilson Vaz

    ResponderExcluir